"O fenômeno da fantasia é um dos fenômenos mais espantosos da vida psíquica. Que é uma fantasia? É um pequeno romance de bolso que carregamos sempre conosco e que podemos abrir em qualquer lugar sem que ninguém veja nada nele, no trem, no café, e o mais frequentemente em situações íntimas. Acontece às vezes de essa fábula interior tornar-se onipresente no nosso espírito e, sem nos darmos conta, interferir entre nós e nossa realidade imediata. Concluímos então que muita gente vive, ama, sofre e morre sem saber que um véu sempre deformou a realidade dos seus laços afetivos."
(NASIO, 1997)
Fantasiar é inerente ao homem. A fantasia emerge como um elemento vital, constituindo-se como uma instância imaginária intrínseca ao psiquismo. No universo da psicanálise, a fantasia é peça fundamental para a compreensão da dimensão psíquica do sujeito. Desvela-se como uma força poderosa, moldando não apenas os recantos mais profundos da psique humana, mas também exercendo influência sobre comportamentos e experiências cotidianas. O termo “fantasia", cunhado por Sigmund Freud, designa a vida imaginária do sujeito e maneira como ele representa para si mesmo a sua história ou a história de sua origem. No psiquismo estão presentes as fantasias conscientes, os devaneios, e as fantasias inconscientes, que são os desejos reprimidos que podem ser satisfeitos mediante os objetos, sonhos, fetiches, ideais e outros conteúdos imaginários.
"É isso que dá seu verdadeiro sentido ao que Freud diz do inconsciente, que ele é constituído pela representação das coisas".
(LACAN, 1966-1967)
Ao revisitar o termo freudiano, Lacan enriquece a compreensão da fantasia, atribuindo-lhe a função de resguardar o sujeito não só contra o horror do real, tal como dos efeitos da castração. A fantasia assume o papel de superfície, uma camada protetora, que propicia ao sujeito o acesso à realidade de uma maneira mais humana, permitindo ao indivíduo confrontar a realidade de forma menos abrupta e mais palatável.
“A fantasia é o reino intermediário que se inseriu entre a vida segundo o princípio de prazer e a vida segundo o princípio de realidade”.
(FREUD apud. NASIO, 1997)
O homem produz os conteúdos fantasiosos em todos os momentos da sua existência. A fantasia age como um elo que entrelaça os momentos passados, presentes e as ideações futuras de sua trajetória, transcendendo as fronteiras temporais. Sendo assim, a fantasia é:
“[...] Ao mesmo tempo, efeito do desejo arcaico inconsciente e matriz dos desejos atuais".
(CHEMAMA, 1993)
Algumas fantasias inconscientes podem se tornar acessíveis por meio de uma elaboração secundária realizada pelo próprio sujeito em um trabalho de análise. Nesta possibilidade, os devaneios, sonhos, repetições e outras representações inconscientes, encontram sentido por meio de uma interpretação própria do sujeito, acompanhada pela escuta e ponderações do analista. Porém, há fantasias que permanecem inacessíveis ao sujeito e não podem ser reconstruídas pela interpretação, permanecendo sob o domínio do recalque.
"É isso que dá seu verdadeiro sentido ao que Freud diz do inconsciente, que ele é constituído pela representação das coisas."
(LACAN, 1966-1967)
Freud compara os devaneios, que são fantasias conscientes, à atividade do brincar da criança. A partir da brincadeira, a criança narra a realidade tal como ela enxerga, a partir da sua perspectiva própria. Ao fantasiar, ela acrescenta a esta realidade uma dose de cor, criatividade e arte. É brincando que a criança tem acesso aos seus saberes e constrói suas representações.
"Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos reais. Em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios".
(FREUD,1906-1908)
O sujeito se utiliza do fantasiar para sustentar uma existência mais temperada. Segundo o psicanalista Jairo Gerbase, "a fantasia serve de suporte ao desejo e à realidade". Seja como mecanismo de proteção para lidar com as frustrações e faltas (castração), seja como maneira de realizar e expressar os desejos inconscientes, seja como recurso que encontra para produzir prazer onde a realidade lhe é adversa. A fantasia, assim, não apenas ressurge como uma ferramenta adaptativa, mas também como um meio de transcender os limites da realidade, proporcionando ao ser humano uma dimensão imaginativa indispensável para sua compreensão e interação com o mundo ao seu redor. Sem a fantasia, sua jornada se torna impraticável.
"Interpretamos nossa realidade segundo o roteiro das nossas fantasias".
(NASIO, 1997)
Fantasiar é trazer à vida uma dose de graça. Fornece ao sujeito novos modos de interpretar, outras ocasiões para performar. A realidade só é possível com uma dose de fantasia. Fantasiar é preciso!
Notas da autora:
As citações do texto têm como referências bibliográficas:
DICIONÁRIO de Psicanálise. In: CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise: Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993;
ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1998;
FREUD, Sigmund. "Gradiva" de Jensen e outros trabalhos. [S. l.]: Imago, 1906- 1908. v. IX;
NASIO, Juan-David. A fantasia: O prazer de ler Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2007;
S. DE AUGUSTO, Norma. Da fantasia ao fantasma fundamental. In: ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE; ZBRUN, Mirta. Imagem Rainha: As formas do imaginário nas estruturas clínicas e na prática psicanalítica. [S. l.]: Sette Letras, 1995;
LACAN, Jacques. A lógica do Fantasma: Seminário 1966- 1967. Recife: Centro de estudos freudianos de Recife, 2008;
LACAN, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In: LACAN, Jacques. O seminário: Livro 11- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: [s. n.], 1988;
Gerbase, J. Fantasia ou Fantasma. In Falo Revista brasileira do Campo Freudiano, n. 1, junho 1987.